Investigação sobre grilagem liga frigoríficos a rede de corrupção e lavagem de dinheiro

Em investigação da Repórter Brasil, o fio que relaciona autoridades, invasão e desmatamento de unidade de conservação em Rondônia, pecuária e grandes frigoríficos brasileiros fica exposto e evidencia uma rede de ações criminosas.

Protegidos por um esquema de vigilância armada provido 24 horas por dia pelo governo de Rondônia, 605 cabeças de gado pastavam até abril dentro do Parque Estadual de Guajará Mirim, uma unidade de conservação de proteção integral da Amazônia onde a pecuária é proibida.

Os animais estavam ali após serem tomados pelo Estado. Seu dono, segundo a Polícia Militar  de Rondônia, é um pecuarista apontado como invasor da área de preservação – ele foi preso em novembro durante uma megaoperação que retirou suspeitos de grilagem do local. O rebanho acabou apreendido para evitar eventual venda, já que, segundo as autoridades, cúmplices do homem detido seguiam soltos e rondavam o local para tentar retirar o gado de lá.

“Identificamos uma organização criminosa atuando no parque que envolve proprietários de fazendas que são vizinhas à unidade de conservação”, explica o promotor de Justiça de Rondônia Pablo Hernandez Viscardi, que atua nas investigações. “Essas propriedades são usadas para lavar o gado, que na verdade é criado dentro do parque. Sem essa manobra, não é possível vender para os frigoríficos”, completa.

O fio que conecta pecuária, desmatamento e grilagem no Parque Estadual de Guajará Mirim vai além dos crimes ambientais: investigações feitas por autoridades nos últimos dois anos, às quais a Repórter Brasil teve acesso, sustentam que integrantes da quadrilha estariam envolvidos com casos de lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, falsidade ideológica, extorsão e estelionato.

O gado é o elemento que conecta as irregularidades. E documentos inseridos nos autos processuais ou obtidos diretamente pela Repórter Brasil mostram negócios feitos entre os acusados dos crimes e alguns dos maiores frigoríficos do Brasil, nos últimos anos – a exemplo de JBS, Marfrig e Frigon.

Negócios com frigoríficos

As investigações sobre as remessas de gado dos acusados para São Paulo apontaram também a existência de três contratos assinados em janeiro de 2021 pelo ex-juiz Hedy Carlos Soares e por Marcos da Cunha Coelho com a Fazenda Chaparral, no município de Rancharia. A propriedade – um confinamento que se dedica à engorda de bois e vacas próximos ao abate – é fornecedora de importantes frigoríficos e recebeu animais de ambos.

GTAs consultadas pela Repórter Brasil revelam que em dezembro daquele mesmo ano, a Fazenda Chaparral forneceu animais à unidade de Lins da JBS, em São Paulo. A JBS informou que a propriedade “encontra-se atualmente bloqueada” pela empresa e que “todas as aquisições estavam de acordo com o Protocolo de Monitoramento do Ministério Público Federal e com a Política de Compras” do frigorífico. 

Já a unidade da Marfrig em Promissão (SP) adquiriu animais da Fazenda Chaparral entre 2022 e 2024. Procurada, a empresa ressaltou não ter recebido gado da propriedade em 2021, ou seja, no ano em que as investigações mencionam seus negócios com Soares e Coelho.

Uma das peças dos inquéritos sigilosos aos quais a Repórter Brasil obteve acesso mostram planilhas de contabilidade e inclusive extratos bancários do grupo ligado ao ex-juiz Hedy Carlos Soares – acusado também de lavagem de dinheiro. Os documentos fazem menção à JBS tanto no contexto de emissão de GTAs, como também registram depósitos que o frigorífico fez em contas de pessoas ligadas ao então magistrado.

Além disso, várias propriedades e pessoas investigadas pelas autoridades aparecem fazendo remessas de gado direta e indiretamente para os grandes frigoríficos brasileiros.

Um exemplo é Andréia de Lima Sinotti. Entre 2021 e 2022, ela encaminhou animais para serem abatidos pelo matadouro da JBS em Vilhena, conforme GTAs acessadas pela Repórter Brasil. A fazenda fornecedora, segundo os documentos, seria a Chácara Mãe e Filha, localizada em Buritis (RO).

Acontece que, em declarações prestadas às autoridades, Sinotti admitiu não ser pecuarista de fato. Apontada como “laranja” do ex-juiz nas investigações, ela disse que todas as GTAs emitidas e vendas realizadas em seu nome eram feitas por seu marido, que, por sua vez, realizava as operações em nome de Hedy Carlos Soares. O marido de Sinotti também confirmou, em depoimento, que os lucros das negociações eram revertidos ao magistrado.

A JBS é mencionada explicitamente em um balanço de movimentação de animais atribuído à quadrilha e anexado ao inquérito que investiga o ex-juiz. O documento descreve a venda de 13 bois e 5 vacas ao frigorífico em 19 de março de 2021. Nesta mesma data, 13 bois e 5 vacas foram encaminhados à JBS numa venda registrada em nome de Sinotti e da Chácara Mãe e Filha, de acordo com uma GTA obtida pela Repórter Brasil

Em outra coincidência semelhante, o balanço informa a venda de 20 vacas ao frigorífico no dia 25 de março de 2022 – mesma data em que registros de GTAs apontam a JBS como destinatária de uma remessa de animais da Chácara Mãe e Filha com as mesmas características.

O balanço de animais que descreve essas transações não menciona a Chácara Mãe e Filha, mas apenas a Fazenda Prosperidade, localizada também em Buritis e, esta sim, oficialmente registrada em nome do ex-juiz Soares. Em 2019, ela teria recebido, segundo o MP, centenas de animais para engorda oriundos da Fazenda Cantão, localizada dentro do Parque Estadual de Guarajá Mirim.

O próprio Walvernags Cotrin Gonçalves, o homem do gado apreendido em novembro dentro do parque, forneceu animais diretamente para a JBS de Vilhena e de Pimenta Bueno em 2021 e 2022, e para a Marfrig de Ji-Paraná entre 2020 e 2021.

Nesse período, o Sítio Oliveira – fazenda de Gonçalves registrada como fornecedora dos frigoríficos – recebeu repetidamente remessas de gado de propriedades cujo endereço as situam no limite do Parque Estadual de Guajará-Mirim e também da Fazenda Prosperidade e da Chácara Mãe e Filha.

A JBS informou que tanto o Sítio Oliveira como as propriedades em nome de Andréia Sinotti – Chácara Mãe e Filha e a Fazenda Sombra da Mata – “encontram-se atualmente bloqueadas” e que os negócios feitos no passado seguiram os protocolos de compra responsável do frigorífico. A Marfrig também admitiu ter comprado animais de Walvernags Cotrin Gonçalves em 2020 e 2021, mas também afirma que a propriedade “não possuía nenhuma inconformidade com os critérios socioambientais” – e ressaltou ainda que “encerrou suas atividades em Ji-Paraná (RO) em setembro de 2021”.

“As eventuais irregularidades apontadas pela Repórter Brasil eram praticadas em elos anteriores da cadeia”, acrescenta a JBS, o que, na opinião do frigorífico, “reforça a urgência de endereçar o desafio setorial de monitorar toda a movimentação de gado bovino, visto que as empresas processadoras de proteína não têm acesso às GTAs de outros elos da cadeia produtiva, impedindo que tenham visibilidade sobre práticas irregulares como as apontadas pela reportagem”. As notas podem ser lidas integralmente aqui.

Andréia de Lima Sinotti não quis comentar. Os demais pecuaristas mencionados não enviaram respostas aos questionamentos enviados a seus advogados.

A Frigon, por sua vez, aparece como destino de animais remetidos por Gonçalves via uma fazenda chamada Recanto, em Nova Mamoré, entre 2018 e 2019 – situada na borda do Parque Estadual de Guajará Mirim. Essa fazenda está registrada em uma base de dados do Incra, mas aparece como “cancelada” por “sobreposição parcial com Glebas Públicas devidamente certificadas”. 

A localização do imóvel registrada nos sistemas públicos coincide com o local apontado pelos policiais como a sede da Fazenda Cantão, no Parque Estadual de Guajará Mirim. O frigorífico não respondeu às tentativas de contato da reportagem.

A reportagem completa pode ser acessada na Repórter Brasil, na matéria investigativa Caso de grilagem liga frigoríficos a rede de corrupção e lavagem de dinheiro.

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