A saúde indígena e a defesa dos territórios tradicionais

O segundo texto da série “Saúde indígena no Brasil” aborda a intricada relação entre território e saúde das comunidades indígenas. O próprio conceito de território é capaz de evidenciar essa coexistência, no qual faz parte da identificação da comunidade.

A saúde indígena está intimamente ligada à defesa dos territórios tradicionais, uma vez que a perda de terras impacta diretamente na saúde e no bem-estar das comunidades. É necessário frisar que,

A demarcação das terras indígenas é, sem dúvida, o resgate de uma dívida histórica. E independentemente da maior ou menor dimensão das áreas, há que se levar sempre em conta o aspecto humanitário do problema. Entretanto, questionamentos devem ser postos diante da possibilidade de interferência estrangeira na região com fundamento no princípio da autodeterminação dos povos originários. (Nunes, p. 24. 2015)

A SESAI, através de suas diversas ações e programas, tem em vista garantir que as populações indígenas tenham acesso a serviços de saúde de qualidade, respeitando suas particularidades culturais e promovendo um modelo de atendimento integral e humanizado.

A saúde indígena no Brasil é um campo marcado por desafios complexos, que envolvem fatores históricos, culturais, sociais e econômicos. Segundo Darcy Ribeiro, renomado antropólogo e sociólogo brasileiro, a colonização teve um impacto devastador nas populações indígenas, resultando na perda de terras, desmatamento, introdução de doenças e destruição de modos de vida tradicionais. Essa história de marginalização e violência continua a influenciar negativamente a saúde das comunidades indígenas até a contemporaneidade.

A Constituição de 1988 representou um marco significativo, ao reconhecer os direitos dos povos indígenas, e estabelecer políticas específicas para a sua proteção e promoção da saúde. A criação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, inserido no Sistema Único de Saúde (SUS), foi um passo importante para garantir atendimento diferenciado, culturalmente adequado às populações indígenas. No entanto, conforme apontado por Gilberto Freyre (1933), um dos principais sociólogos brasileiros, as desigualdades sociais e a exclusão histórica dessas populações, ainda representam barreiras significativas para a implementação efetiva dessas políticas.

Atualmente, doenças infecciosas, como tuberculose e malária, continuam a ser um problema grave entre os indígenas, exacerbado pela falta de acesso adequado a serviços de saúde. Segundo estudos de Bourdieu (1979), a marginalização social e a falta de capital social e econômico dessas comunidades, dificultam a adoção de práticas preventivas e o acesso a tratamentos médicos de qualidade. A desnutrição e outros problemas nutricionais também são comuns, frequentemente, resultantes de mudanças forçadas nos hábitos alimentares devido à perda de territórios e alterações ambientais.

A estrutura de atendimento à saúde indígena no Brasil é organizada através dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), responsáveis pela coordenação e execução das ações de saúde em suas respectivas regiões. Cada DSEI conta com equipes multidisciplinares de saúde indígena, compostas por médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, dentistas e agentes indígenas de saúde e saneamento. Esses profissionais desempenham um papel crucial, ao levar cuidados básicos de saúde diretamente às aldeias e ao promover ações de prevenção e educação em saúde.

A integração entre a medicina tradicional indígena e a não indígena, é um aspecto fundamental para um atendimento eficaz e respeitoso. Conforme argumentado por Michel Foucault (1975), a biopolítica e o controle social, exercidos pela medicina moderna, podem entrar em conflito com os saberes e práticas tradicionais dos povos indígenas. Portanto, é essencial que os profissionais de saúde sejam capacitados para compreender e respeitar essas especificidades culturais, promovendo uma abordagem intercultural que valorize os conhecimentos tradicionais.

A participação ativa das comunidades indígenas na formulação e implementação de políticas de saúde, é crucial para garantir que suas necessidades e particularidades sejam atendidas. Segundo Boaventura de Sousa Santos (2014), sociólogo português, a construção de um conhecimento emancipatório e a promoção de uma justiça cognitiva, são fundamentais para enfrentar as desigualdades e injustiças que afetam as populações tradicionais. Isso inclui a defesa de seus territórios, pois a saúde indígena está intrinsecamente ligada à proteção de suas terras e ao reconhecimento de seus direitos territoriais.  

Em resumo, a saúde indígena no Brasil exige uma abordagem holística e integrada, que considere não apenas os aspectos biológicos, mas também os determinantes sociais, culturais e ambientais da saúde. Políticas públicas inclusivas e culturalmente sensíveis, associadas à participação comunitária e ao respeito pelos saberes tradicionais, são essenciais para promover a saúde e o bem-estar das populações indígenas no país.

João Pacheco de Oliveira procura mostrar que certas análises desmerecem a história e, por isso, acabam minimizando o entendimento do “horizonte político dos indígenas”. Seu texto tem como fio condutor a noção de situação histórica, que entende ser a “capacidade de determinados agentes (instituições e organizações) de produzirem certa ordem política por meio da imposição de interesses, valores e padrões organizativos aos outros componentes da cena política”. Ao discutir essa noção, procura distingui-la de outros conceitos da antropologia política, interrogando os processos de dominação na Amazônia e identificando formas do exercício da dominação e interesses e valores gerais a elas vinculados (Oliveira apud Castro, p. 10–11, 2012).

Nessa perspectiva, faz-se necessário apontar a relevância da existência de políticas públicas que visem atender as demandas vinculadas a saúde dos povos indígenas, bem como acompanhar se os projetos são devidamente executados, e se de fato atendem aos dinamismos culturais existentes dentre os territórios. Para tal, a instituição social “Ministério Público Federal” tem papel fundamental para a estabilidade e coesão social, não deixando que a saúde indígena chegue ao estado patológico, conforme aponta Durkheim (2007).

Referências:

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica Social do Julgamento. Les Éditions de Minuit, 1979.

CASTRO, Edna. AMAZÔNIA: sociedade, fronteiras e política. Caderno CRH, Salvador, c. 25, n. 64, pág. 9 a 16, janeiro/abr. 2012.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime de Economia Patriarcal. Editora Mundial, 1933.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Gallimard, 1975.

NUNES, Paulo Henrique Farias. Dificuldade de demarcação da Pan-amazônia e dos territórios indígenas na região. In: Textos & Debates, boa Vista, n.26, p. 7-28, referência 2014. Publicação 2015. Disponível em: https://revista.ufrr.br/textosedebates/article/view/2785/1569 Acesso 15 de Jul. 2024. 

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. Companhia das Letras, 1995.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologies of the South: Justice Against Epistemicide. Routledge, 2014.

Últimas Postagens

Manifestação contra o Marco Temporal. Foto: Apib/Pí Suruí.

O que é o Marco Temporal?

Discutir criticamente a construção da tese do Marco Temporal e suas reverberações em violações aos direitos indígenas será foco de uma nova série de publicações.

Compartilhe esse post!

Facebook
WhatsApp
LinkedIn
Twitter
Email