O segundo texto da série discute a construção da tese do Marco Temporal a partir de uma visão etnocêntrica com bases coloniais.
O marco temporal endossa uma história de massacre pela qual os povos indígenas passam e vivem constantemente. Como aponta Wayrotsu, indígena Xavante, “Nosso sofrimento começou com o primeiro navio que chegou ao Brasil”.
Em relação à Amazônia podemos observar que
calcula-se que só na Amazônia viviam nada menos que 2 milhões de indivíduos, e no restante do atual território brasileiro, um milhão e meio, o que perfaz um total de 3 milhões e meio de indivíduos. Um número muito grande se o compararmos com as populações das nações europeias da época, como Portugal, que tinha apenas um milhão de habitantes (Prezia; Hoornaert, 2000, p. 110).
As Violações de Direitos junto aos povos indígenas não param, trata-se de práticas constantes e recorrentes, “os invasores fizeram guerras contínuas contra os indígenas, com a finalidade de ocupar suas terras, prendê-los ou vendê-los como escravos” (Prezia; Hoornaert, 2000, p. 111).
Aos indígenas, historicamente negou-se suas subjetividades. Eles foram tratados como objeto, mercadoria e eram caçados por bandeirantes. Os resgates históricos apontam variadas violações de direitos dos povos indígenas, que se refere ao controle dos seus corpos e território.
Dessa forma, as relações de poder entram em cena, nos mostrando que os discursos dominantes reproduzidos sobre o Brasil, em relação à descoberta de uma nova terra, não passam de factoides que mascaram a veracidade da formação nacional brasileira. Na realidade, no período da colonização
Os portugueses se julgavam os novos donos da terra, não respeitaram a vida comunitária dos povos que aqui viviam. Entravam nas aldeias, roubavam e destruíam suas roças e obrigavam os indígenas a trabalhar como escravos. Essa situação era tão dura que muitos morriam de doenças ou de tristeza. Outros Entregavam-se à bebida para esquecer o sofrimento do cativeiro. Muitos também fugiam para regiões inacessíveis aos colonos, tentando preservar sua identidade (Prezia; Hoornaert. P. 111, 2000).
Fica claro que a prática etnocêntrica, onde um grupo ou sociedade que se sente superior a outra, e se observa enquanto modelo a ser seguido, conduziu a prática dos europeus na interação com os povos que já ocupavam o território brasileiro. Um modelo que se estende até a contemporaneidade, comprovada com a tese do marco temporal.
Os direcionamentos em relação aos povos indígenas são pensados por uma política onde os que se dizem representantes, não são conhecedores das diversidades culturais existentes. Há a necessidade de mais representações indígenas que apontem as dificuldades reais dos territórios. No entanto, o que encontramos acaba por ser um distanciamento dessas representações pela forma como as reuniões e pautas são conduzidas, observamos isso com a saída da APIB das mesas de negociações da tese sobre a pauta do Marco Temporal em 2024.
Deste modo, precisamos corroborar com diversas verbalizações de indígenas quando manifestam que os Direitos Indígenas não são negociáveis. Os povos originários possuem histórias junto ao território brasileiro que antecede o ano de 1988, período em que foi constituída a Constituição Federal.
Colonialismo e etnocentrismo
Os indígenas sofrem violações diárias. É necessário ressaltar que a dinâmica de subjugar os povos tradicionais ocorre desde os primeiros registros da histórica interação entre portugueses e indígenas.
“Finalmente, entender a lógica de um sistema cultural depende da compreensão das categorias constituídas pelo mesmo.” (Laraia, 1986, p. 93). Este aspecto nos faz identificar que cada povo possui as suas dinâmicas interpretativas, e que estas diferem totalmente da tese do marco temporal, que impõe uma data inicial para validação e consideração de existência e habitação dos povos indígenas em sociedade brasileira.
Os determinismos, tanto o biológico quanto o geográfico, contribuem para que as práticas etnocêntricas sejam acentuadas, uma vez que consideram questões voltadas para as características da pele e ambientes climáticos enquanto fatores determinantes para o desenvolvimento. Na contramão, observamos que os povos indígenas resistem às práticas deterministas e a imposições legislativas.
É necessário iniciar a práxis de olhar as culturas existentes a partir de suas próprias construções, conforme sugere o conceito do relativismo cultural. Ao passo que queremos impor ao outro nossos hábitos particulares de determinada cultura, caímos no risco de sermos etnocêntricos, conceito que explica a relação onde um grupo ou sociedade se sente superior ao outro, tendo como resultado práticas de superioridades que acabam por estigmatizar culturas. Olhar para o outro e construir percepções a partir do que esses sujeitos apresentam, suas próprias análises, narrativas e vivências.
Ao refletirmos em torno de construções conceituais e trazermos para a realidade da tese do marco temporal, percebemos que aceitá-la, colocá-la em vigor, seria praticar o etnocentrismo, onde um padrão definido por sujeitos que ocupam cargos políticos relevantes colocaria em prática suas construções em torno de como pensam que o território social brasileiro deve ser distribuído e organizado.
Leia o primeiro texto dessa série sobre a tese do Marco Temporal:
Fontes:
LARAIA, R. B. Cultura: Um Conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
Portal Amazônia. Entenda porque a APIB deixou a mesa de conciliação do marco temporal. Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia/apib-deixou-mesa-marco-temporal/
PRÉZIA, B; HOORNAERT, E. Brasil Indígena: 500 Anos de Resistência. São Paulo: FTD, 2000.